A dor — essa companheira insistente e invisível — não costuma aparecer em manchetes. Ela multiplica seus estragos em silêncio: incapacita, consome, isola. Não importa a estrutura social, renda ou escolaridade: a dor crônica — aquela que persiste por meses ou anos — debilita vidas. E se o Estado não reconhece esse peso como dever de cuidado, assistimos a uma falha grave de seu pacto social.
É nesse contexto que surge o Projeto de Lei 336/2024, de autoria da deputada Bia Kicis, que propõe instituir diretrizes básicas para a melhoria da saúde das pessoas com dor crônica, criar o Dia Nacional de Conscientização e Enfrentamento da Dor Crônica e — originalmente — incluir nos currículos dos cursos de saúde disciplina obrigatória sobre o tema.
A proposta transitou pela Câmara em substitutivo proposto pela deputada Adriana Ventura, que retirou do texto a imposição curricular — argumentando que essa competência caberia ao Conselho Nacional de Educação e ao Ministério da Educação, respeitando a autonomia universitária. Ainda assim, o projeto mantém em seu cerne a ideia de que o atendimento integral a quem sofre dor crônica deve ser garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com regulamentação pelos órgãos competentes.
A ideia de “diretrizes básicas” pode soar genérica — mas já é um avanço simbólico e prático. Na prática, reconhece-se que há milhões de brasileiros vivendo em sofrimento contínuo sem uma política pública que acolha, regule e promova tratamento adequado. Segundo dados do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos (ELSI-Brasil), mais de um terço das pessoas acima de 50 anos vive com dor crônica — o que revela o caráter estrutural do problema.
Por que é urgente apoiar este PL
- Reconhecimento institucional de uma condição negligenciada
Sem lei que estabeleça direito claro ao atendimento, muitos pacientes ficam presos ao limbo: não há obrigação de oferta uniforme, nem parâmetros mínimos de qualidade. O PL 336/2024, por propor diretrizes nacionais, reduz essa discricionariedade — e força estados e municípios a assumirem responsabilidades. - Redução de desigualdades regionais em saúde
Sabemos que o acesso a tratamento especializado varia enormemente entre regiões — seja por escassez de especialistas, falta de centros de dor ou simples desconhecimento. Um PL federal com diretrizes pode atenuar essa injustiça territorial: pacientes em locais periféricos ou remotos teriam fundamento legal para exigir atendimento. - Estimulo à formação e capacitação profissional
Embora o substitutivo tenha retirado a imposição da disciplina nos cursos de saúde, o PL permite que o Estado, com incentivos e formação continuada, estimule que médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e demais profissionais conheçam bem os protocolos da dor crônica. Isso é vital: não basta ter “exame disponível” se quem atende não sabe como lidar com a complexidade da dor persistente. - Eficiência em tempo médio e custo
Pacientes com dor crônica frequentemente engolem remédios palatáveis às pressas, fazem múltiplos exames, recorrem a urgências e atendimentos fragmentados — muitas vezes sem coordenação. Um modelo de atenção programada, com diretrizes integradas, pode reduzir sobrecarga institucional, evitar duplicações e melhorar resultados a médio prazo. - Visibilidade e mobilização social
Criar o “Dia Nacional de Conscientização e Enfrentamento da Dor Crônica” (05 de julho) força o tema ao debate público. Pode gerar campanhas educativas, pressão por pesquisas, melhor aceitação social de quem sofre — e menos culpabilização moral (“você está inventando dor”) — um estigma que muitos vivenciam.
Um sim consciente (e exigente)
Apoiar o PL 336/2024 não é assinar um cheque em branco. É apostar que o Brasil pode internalizar a dor crônica como tema de saúde pública — e exigirmos que esse reconhecimento vá além da retórica. É condicionamento de cidadania: quem sofre não pode ficar invisível. Não pode enfrentar preconceito.
Há uma urgência ética na aprovação deste projeto. Enquanto o Congresso discute, milhões de brasileiros vivem sob dor insuportável, sem acesso a tratamento adequado — e ainda enfrentam o preconceito pelo uso diário de opioides, única forma de alívio possível para muitos.
Esses pacientes, em busca de qualidade de vida, acabam sendo rotulados injustamente como dependentes, quando, na verdade, são vítimas de um sistema que falha em lhes oferecer alternativas seguras e empatia.
A criminalização velada da dor e do uso controlado de analgésicos potentes é um sintoma da desinformação que o PL 336/2024 tenta combater.
Que o parlamento transforme essa proposta em lei viva, e não mais um documento bem-intencionado sepultado na gaveta. Que o Brasil não adie mais a dor. Quem sofre, já esperou demais.
Este conteúdo reflete a opinião Editorial do Jornal Correio de Curitiba.